terça-feira, 21 de abril de 2009

A SERESTA DO REFRÃO

Houve um tempo em que Ouro Preto era uma cidade tipicamente interiorana. Sua população era de pouco mais de vinte mil habitantes, não havia linhas regulares de ônibus, não havia turismo de final de semana e os automóveis não chegavam a três dúzias. O único ruído mais conhecido era o das tropas de burros que entregavam lenhas nas casas. A vida acabava após as dez da noite, com o final da sessão do cine Vila Rica e o silêncio tomava conta das ruas e ladeiras da cidade. Um ou outro boteco aventurava-se até um pouco mais tarde, na esperança de que o Zé Otaviano aparecesse.

A cidade dormia, mas como dizia o Mengálvio, nativo e amigo da república, as janelas tinham ouvidos... Nas ruas estreitas e tortas em que as casas não têm recuo, a vida da cidade era passada a limpo pela nata da sociedade local. Senhoras de fino trato, debruçadas em suas janelas, trocavam confidências sobre tudo que sabiam ou tinham ouvido falar. Falavam de tudo e de todos. Ouvidos aguçados pousados nas janelas captavam de tudo um pouco, interpretavam à sua maneira e depois geravam suas respectivas versões.

Às sextas-feiras fazíamos serenatas. Começávamos pelas Cabeças, que era onde a cidade começava e acabávamos no Antônio Dias. Nossos pontos de parada eram sob as janelas de nativas amigas que “brindávamos” com as nossas pérolas. Além de alguns nativos amigos, também participavam das serestas o Dandão, ex-regente do Coral de Ouro Preto, que morou na Pulga durante alguns anos em que foi aluno da Escola de Minas, o Zé Otaviano, o Claudim e, às vezes, o Magnago. Os nativos eram representados pelo Victor Godoy, que já foi diretor da Escola de Farmácia e secretário da Cultura de Ouro Preto, o Mengálvio, o Landim, filho de um exprefeito e o Toninho, sobrinho do Padre Mendes.

Toda serenata que se preza tem que ter cachaça e, no nosso caso não era diferente, até porque enfrentar as frias madrugadas ouropretanas a seco não era tarefa das mais fáceis. Cachaça e serenata são duas coisas que se completam – uma facilita a outra. Se a serenata é uma expressão do afloramento do sentimento das pessoas, a cachaça é o catalisador dessa reação. Para tornar nossas serestas mais interessantes, criamos a figura do refrão. O refrão é aquela pessoa que repica depois que algum outro tenha tomado uma dose da marvada. O único que ficava fora do refrão era o Dandão, porque precisávamos de pelo menos um que tocasse violão e soubesse a letra das músicas.

Naquela noite o refrão era o Landim, que desabou feito uma mousse ainda no começo da jornada. Desabou, mas continuou participando, sendo carregado pelos demais para todos os pontos de parada obrigatória, junto com o violão e a garrafa de pinga, que não era uma garrafa, mas sim um gomo de um bambu gigante. Três da madrugada, já exaustos e bêbados, não necessariamente nesta ordem, cumpríamos com a última etapa: a parada na casa da Tentém, irmã do Maluf e namorada (hoje esposa) do Toninho, no começo da subida da Rua do Ouvidor. Nenhum outro som cortava o silêncio da noite além das nossas vozes cansadas e pastosas. Finda a serenata, era hora de ir para casa, mas Landim, o nosso refrão, ainda restava estirado, de bruços, no meio da rua. Naquela hora, com o cansaço que tomava conta dos seresteiros, ninguém mais tinha forças ou paciência para lidar com bêbados caídos pela rua. Começaram a aparecer sugestões de como fazer para que o Landim se erguesse e caminhasse pelas suas próprias pernas:
- Puxa o cabelo dele...
- Joga cachaça na cara dele...
- Dá umas bicas nele...
- Faz cócegas nele...
Nada fazia o Landim manifestar qualquer reação. Foi quando alguém sugeriu:
- Joga cachaça no cu dele...

Landim levantou-se num salto meio etilobático, misturando bebida e acrobacia, e atravessou correndo a Praça Tiradentes, a rua Direita e foi até o final da rua São José, onde morava, depois de derrubar uma carrocinha de pipoca que dormia em frente ao cinema, berrando a plenos pulmões:
- No cu não!!! No cu não!!! No cu não!!!
E um bando de bêbados, sem se darem conta das interpretações que se seguiriam, foi atrás dele na tentativa de acalmá-lo:
- Pera aí, Landim, Venha cá, vamos terminar... Pera aí, vamos acabar...

No dia seguinte, com a ressaca ainda a lembrar-nos da noitada, e por muito tempo, percebíamos que a cidade nos via com outros olhos – provavelmente, éramos o assunto. Alheio aos comentários e interpretações, Mengálvio apontava para as janelas com cortinas que protegiam suas intimidades e dizia:
- Não tem ninguém, mas se você der um tiro, caem pelo menos três de trás da cortina!

Caiafa

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