terça-feira, 21 de abril de 2009

A PRIVADA DA SALA

Na casa só havia um banheiro que, com alguma tolerância, merecia este nome. Ficava imediatamente após a sala e era um símbolo do fausto que a casa experimentara ao longo de seus muitos anos, antes de se tornar república. Espaçoso, com uma imensa clarabóia para permitir a entrada da luz natural e dar vazão aos gases indesejados. Ao fundo havia uma banheira em ferro esmaltado, tendo acima um chuveiro alimentado por um aquecedor elétrico. Por questões econômicas, no início da república, todos tínhamos que tomar banho no mesmo final de tarde, para que o aquecedor fosse ligado uma única vez. Embora não houvesse bichos na república, uma vez que todos entráramos juntos, respeitávamos a hierarquia escolar. Assim sendo, nós, os mais novos, normalmente tomávamos banho de morno para frio. Ao lado esquerdo de quem olhava para a banheira ficava o bidê e em frente dele a pia e sobre ela um armário espelhado. Do mesmo lado da pia, mas mais próximo à porta, ficava a privada. Como era praticamente o único banheiro da casa, desconsiderando-se o lavabo do andar superior, quando havia festa tornava-se insuficiente para o atendimento dos necessitados. Filas formavam-se à sua porta aguardando a vez, qualquer vez, para se produzir qualquer coisa.

Em uma daquelas noites de julho, muito frias, com shows dos professores do Festival de Inverno, lareira acesa e muita pinga dentro da casa, a festa rolava solta. Muita gente, alunos do Festival e nativos, já tinha aprendido o caminho das pedras: final de noite em Ouro Preto era na Pulga. Naquela noite, em especial, a casa estava mais cheia do que de costume. A polícia estava exercendo forte pressão para tirar as pessoas das ruas e quem já tinha pelo menos ouvido falar da república foi para lá. Quem nunca tinha ouvido falar foi levado por outros. A sala estava lotada, onde corria um verdadeiro espetáculo da melhor música e canto que havia em Ouro Preto naquele dia. A copa e a cozinha estavam repletas de transeuntes que lamentavam o fato de não poderem continuar nas ruas em que gostariam de estar, longe daquela cantoria. A escadaria que leva ao andar superior estava tomada como se fosse uma arquibancada em final de copa do mundo.

Neste momento bateu-me a necessidade de uma ida ao banheiro. Parando junto à porta, registrei o momento para o resto da vida, era quase uma fotografia, para acreditar, só vendo. Uma mocinha, totalmente vestida, estava de pé, dentro da banheira, sob o chuveiro, com certeza frio, senão gelado pelo clima de julho, talvez para curar-se de alguma bebedeira, no que era acudida por outra que tentava acalmá-la. Na privada dois rapazes riam e urinavam simultaneamente. Na pia, enquanto uma mocinha lavava suas mãos, outra loira, com longas madeixas douradas, penteava-se defronte o espelho. Alheio a tudo isto, um casal de namorados trocava juras de amor sentado no bidê. Fora a fila que esperava pela vacância de algum lugar para alguma coisa.

Mas a privada, confeccionada com a melhor louça inglesa, era muito anti-higiênica. Possuía uma espécie de bandeja que retinha líquidos e sólidos, antes de liberá-los para o esgoto. Sólidos mais volumosos eram passíveis de não serem carregados pelas águas, demandando serem empurrados com a ajuda de algum objeto, ou serem deixados ali, à mostra, para saudar o usuário seguinte – o que acontecia em grande parte, quando não era utilizada pelos pulgatorianos. Decidimos terminar com aquela fonte de vergonha. Resolvemos arrancá-la do banheiro e substituí-la por uma mais moderna, sem aquele aparador inconveniente. E o que fazer com aquela velharia? Alguns propunham conservá-la de algum modo, outros pretendiam simplesmente destruí-la a golpes de marreta. Salvou-a um discurso de um pulgatoriano apaixonado:
- Nesta casa moraram belas nativas, inclusive a Bebel, musa de muitas punhetas nossas. E esta privada já teve o privilégio de ver de perto o seu cu arregalando-se para ela. Já viu sua buça, mais do que qualquer outra pessoa, esfregou-se em suas coxas e sentiu a maciez da sua bunda. Esta privada já viu coisas que muito pulgatoriano gostaria de ter visto!

A Bebel não sabe, mas ela salvou a privada que deixou de compartilhar o banheiro com outras louças sem qualquer graça, passou a ocupar um lugar de honra na sala da Pulga e chegou a ser exposta em um evento de arte antiga no Rio de Janeiro – com direito a seguro e segurança pessoal. Entronizada no canto da sala, é a testemunha muda de muitos dos casos relatados neste livro – são quase 40 anos de eventos muito mais interessantes do que a bunda da Bebel, ou não.

A banheira, coitada, não teve a mesma sorte, foi jogada nos fundos da república até que alguma boa alma a carregasse. Tempos depois, uma banheira semelhante foi furtada por alguns. Um bando de sem-noção, talvez saudosos amantes do patrimônio histórico. A estória do furto, verdadeira aula de logística e desafio ao bom senso, combinada com a infalível Lei de Murphy, encantou gerações de pulgatorianos.

Caiafa

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