terça-feira, 21 de abril de 2009

O MOTORISTA DO FESTIVAL

Ao final do Festival de Inverno de 1968, sentindo a apatia e até o menosprezo da sociedade local, os diretores, professores titulares e professores assistentes reuniram-se no auditório da Escola de Farmácia e fizeram uma análise cuidadosa dos fatos. A conclusão era a de que a sociedade ouropretana não via o festival com bons olhos porque dele não participava. A participação nos cursos pressupunha o atendimento a requisitos artísticos mínimos que não estavam ao alcance dos nativos.

Em abril de 1969, Júlio Varella, diretor dos cursos de extensão da UFMG, veio a Ouro Preto e convidou-nos para almoçar. Falou das dificuldades do festival para interagir com a sociedade ouropretana e nos fez um convite para fazer parte de uma estratégia de aproximação. Seria oferecido um curso de teatro do qual somente poderiam participar moradores da cidade de Ouro Preto. O curso seria ministrado por um professor convidado da Indiana University, Bennet Oberstein. Caberiam a mim duas tarefas. A primeira era a de ser o professor assistente do Bennet e a segunda era a de dar continuidade ao grupo formado, de modo a criar vínculos do Festival com a sociedade nativa.

Nos últimos dias de junho conheci o Bennet. E o Bennet ficou conhecendo a cachaça. Não houve noite que o gringo fosse dormir sem tomar muitas doses para compensar o stress de suportar um grupo de amadores. Todas as noites, lareira acesa, combinávamos tudo o que não iríamos fazer no dia seguinte. Logicamente a culpa era da cachaça que nos levava a assumir o que sabíamos impossível.

Numa daquelas noites, por volta das onze horas da noite, a casa foi sacudida por pancadas na porta. Acostumado que estava com os bêbados que aqui moravam, atendi à porta. Na minha frente estava toda a diretoria executiva do Festival de Inverno. Fábio Nascimento, diretor geral, foi direto ao assunto. Estavam alojados nos dormitórios da Escola Técnica, onde somente poderiam entrar até as dez da noite e isto, para eles, era impossível. Nem tanto pela boêmia, mas principalmente pela necessidade de estarem presentes a eventos cujo término acontecia após esse horário. Resumindo: naquele ano a diretoria executiva do Festival de Inverno ficou na Pulgatório. E isto marcou a Pulga para o resto de seus tempos.

Com a diretoria alojada em nossa casa, esta passou a ser uma alternativa cultural durante aquele julho de 1.969. A sala da república transformou-se em um auditório privilegiado, onde aconteciam recitais todas as noites. Professores de música e canto, nacionais e estrangeiros, revezaram-se durante todo o período de hospedagem. Em parte para exercitar seus próprios egos, em parte por causa da cachaça e da lareira amiga. Além da diretoria do Festival, que distribuímos pelos demais quartos da casa, hospedamos também o motorista da diretoria que foi colocado no quarto que ficava embaixo da sala. O problema maior era banheiro, que naquela época resumiase ao que ficava atrás da sala, além do lavabo do andar superior. Mas, com boa vontade, este era um problema menor do que ter que ir para a cama às dez da noite.

Em uma daquelas noites bem frias e, por isto, extremamente convidativa para uma cachaçada, o sarau corria solto na sala da Pulga. Professores e professoras revezavam-se na arte de entreter aqueles que se aqueciam ao calor da lareira. De repente, não mais do que de repente, abre-se a porta que dava para a escada e irrompe pela sala o motorista da diretoria, em trajes mínimos, para não dizer ausentes. Atravessou a sala, passando por entre os professores e platéia, e dirigiu-se cambaleante para o banheiro. Fez-se um silêncio de espanto. Trocaram-se olhares de surpresa e reprovação. Sem que a platéia tivesse ainda se refeito do inusitado, saiu do banheiro, quase marchando, num andar trôpego atravessou a sala e foi para a rua.

Quem ainda não tinha manifestado seu espanto, agora já tinha motivos de sobra para fazê-lo. Após alguns instantes de hesitação, resolvi verificar o que estava acontecendo. Encontrei o assunto no meio da rua do Paraná a tremer de frio, tentando encobrir suas partes íntimas e olhando em desespero em todas as direções. Perguntei-lhe se havia algum problema, se estava se sentindo bem. Com os dentes batendo sem parar, respondeu apenas que havia se perdido e não sabia mais como retornar ao seu quarto.

Caiafa

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