terça-feira, 21 de abril de 2009

DONA ANA

Não me lembro do seu nome, não ficou muito tempo na república, mas foi uma das primeiras comadres da casa. Vou chamá-la de Ana, porque sei lá... talvez porque este nome fosse adequado ao seu tipo físico. Era franzina, miúda, beirando os seus sessenta anos, cabelos grisalhos, poucos dentes e pouca fala. Muito pouca fala. Como pouco falava, pouco sabíamos a seu respeito. Apenas percebíamos que guardava dentro de si alguma dor para a qual a medicina não tinha cura. Os olhos, sempre tristes, ficavam quase sempre voltados para o chão. Chão da república que era tratado com carinho, sabedora que era da generosidade dos pulgatorianos em uma cidade que ainda tratava seus empregados domésticos como quase escravos.

Chegava cedo, às sete horas da matina o nosso café já estava pronto nos esperando na cozinha. Assim que saíamos, começava a sua labuta. Invariavelmente começava pelo andar superior. Cuidadosamente limpava o primeiro quarto que encontrasse vago. Os olhos tristes pousados no chão, mas voltados para um passado perdido no tempo. Era como se conversasse com o seu passado. E alguma coisa dentro de si a incomodava. Como não se abria para o mundo, o incômodo era cada vez maior. Sem meios de recuperar o tempo perdido, procurava esquecê-lo. Para isto valia-se de medicina própria, oriunda da sabedoria milenar de seus ancestrais.

Terminada a faxina do primeiro quarto, recorria à sua medicina caseira, que cuidadosamente trazia de casa. Era um líquido quase incolor em uma garrafa tradicional de Coca-Cola, envolta em uma folha velha de jornal. Tomava uma pequena dose. Dois quartos depois, com a dor voltando ainda mais forte, tomava uma segunda dose. Terminava o andar superior com mais uma pequena dose. O andar térreo trazia-lhe mais lembranças e mais dor, mas como a presença de pulgatorianos era uma constante, evitava deixar que sua infelicidade transparecesse. Evitava também recorrer à sua medicina, para evitar que algum morador lhe perguntasse se estava bem.

Nos andares inferiores a dor se tornava aflitiva. Na medida em que o tempo passava, seus olhinhos miúdos procuravam desesperadamente por um relógio. Era como se estivesse à espera de um momento mágico em que tudo iria se resolver. Era uma Cinderela às avessas, aguardando ansiosa o momento em que a sua abóbora se transformaria em carruagem.

Mas o tempo era cruel e os ponteiros do relógio arrastavam-se vagarosamente. A dor apertava e o jeito era retornar à medicina caseira. Mais uma pequena dose aqui, mais uma dose ali, enquanto descia as últimas escadas para os últimos quartos da república.

Terminada a faxina do último quarto, como se fosse algo a comemorar, sentava-se à escada que levava à quadra e tomava a última dose de sua medicina. E exaurida pelo cansaço e as recordações, ficava a mirar a garrafa de Coca-Cola vazia com o seu olhar perdido. E ali ficava, até que a carregássemos até a porta da rua.

No caminho de volta para sua casa, passava pelo alambique onde recompunha a sua medicina para a labuta do dia seguinte.

Caiafa

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