terça-feira, 21 de abril de 2009

ARTHUR BLANCK

Fomos colegas no último ano colegial, mas o Arthur não se deu bem no primeiro vestibular que enfrentou para o ingresso na Escola de Minas. Apenas no ano seguinte obteve sucesso. Rapidamente aproximou-se da Pulgatório, tendo sido oficialmente um dos seus primeiros bichos. Gegê Cagão nós nunca chegamos a considerar um bicho, já que embora não estivesse presente na ocasião da invasão da casa, assinou a Ata de Fundação da República, o que o tornou um de seus fundadores. Junto com o Arthur entrou o Mudinho, ambos nas vagas deixadas pelo Zé Fortuna e Gegê.

Arthur era asmático, só bebia vodka, fumava muito e tinha uma paixão doentia pelo Flamengo – juntava todos os males incuráveis em uma só pessoa. Tornou-se o aluno mais assíduo do Dr. Valter Dornelas, cujas aulas de Física I frequentou por quase dez anos e deixou a Escola porque delas não conseguia se livrar.

Nunca soubemos se tinha pernas, braços, tórax ou abdômen, porque trajava invariavelmente calças compridas, camisas de mangas compridas, sapatos pretos e uma jaqueta, independentemente do tempo. A parte visível de seu corpo era coberta por uma vasta cabeleira ruiva. As mãos, de coloração pálida e sardentas, quando não estavam guardadas nos bolsos seguravam o cigarro ou o copo de vodka.

Por conta de seus excessos etílicos, várias vezes foi parar no Pronto Socorro. Não que estivesse bêbado, mas por conta dos ataques de asma que sempre insistiam em participar desses momentos. Tornara-se habitué de internações part-time, isto é, aquelas em que você vai apenas para tomar uma bolsa de glicose e voltar para o rock. Como todo ataque de asma, o seu tinha um forte componente emocional que se agravava com a vodka, o frio úmido da cidade e o fumo exagerado. Em suas crises, agarrava-se fortemente às pessoas, parecendo desfalecer a cada nova inspiração. Miava e agitava-se como se fosse um gato que tivesse engolido um rato ainda vivo.

Num daqueles finais de semana cinzentos, tempo úmido e frio, sem turistas e sem outra atividade prazerosa, bebíamos em frente à lareira jogando conversa fora. Aos poucos Arthur foi reduzindo o tamanho de sua dose de vodka e aumentando a quantidade de cigarros. Controladamente, a princípio, e totalmente descontrolo a seguir, Arthur começou a miar. A miar e a se debater furiosamente. Achava que dessa vez iria morrer. Como era o discurso que já conhecíamos de cor, não demos muita importância, apenas procuramos acalmá-lo mostrando-lhe que estávamos ali para ajudá-lo.

Não adiantou. Enquanto não nos pusemos a caminho do Pronto Socorro, que ficava ao lado da igreja do Antônio Dias, não se sentiu seguro. Já conhecíamos o enredo da novela: o esforço da subida da rua Direita e o continuar dos casos começados ao pé da lareira criariam uma sensação de conforto e relaxamento que aplacaria a crise asmática. No Pronto Socorro talvez uma dose de glicose e um breve repouso devolveriam o rapaz à vida pulgatoriana. Para não dar por encerrado o que já havíamos começado, levamos a garrafa de cana que ainda estava pela metade, a título de combustível para a nossa jornada. Falávamos do Flamengo como forma de facilitar seu processo de relaxamento, era como se falássemos diretamente ao seu coração. Exaltava-se e a cada exaltação sua respiração tornava-se cada vez mais fácil. Passou a fazer discursos inflamados sobre as glórias rubro-negras. A viagem até o Antônio Dias demorou mais de meia hora. Chegando ao Pronto Socorro, ainda ficamos em dúvida se deveríamos ou não dar entrada no Arthur. O enfermeiro, assistindo à nossa indecisão, pediu que entrássemos. Minutos depois liberou o Arthur e internou a mim e ao Claudim, com direito a uma bolsa de glicose cada um.

Morar na Pulgatório cria uma visão muito particular da cidade de Ouro Preto. Ao sair de casa você sobe a rua do Paraná, isto é, tudo o mais está acima da linha do seu horizonte visual. Se for seguir em direção à praça Tiradentes, esta sensação de estar abaixo continua, porque tudo o mais está lá no alto; se vai em direção à rua São José, ao passar defronte o cinema se tem a mesma sensação quando se divisa as igrejas de São José e do Chico de Cima. Para os pulgatorianos, Ouro Preto é uma cidade que se observa de baixo para cima.

Quando Arthur acordou, por volta de umas três da manhã, percebeu que não estava em seu quarto. Abriu a janela e viu Ouro Preto marcada por algumas poucas luzes, lá embaixo. Preferiu não discutir com o mundo, talvez não estivesse suficientemente sóbrio para isto. Voltou para a cama. Reabriu os olhos eram por volta das oito da manhã. O dia anterior era uma vaga lembrança, um buraco negro em seu cérebro. Tinha a sensação de que acordara durante a noite e vira Ouro Preto de cabeça para baixo, talvez pelo avesso.

Escolado nas peças pregadas pelo álcool, riu de sua lembrança. Correu os olhos pelo quarto que ainda lhe parecia estranho. Foi até a janela que abrira em sonho e, desta vez, abriu-a para a realidade: Ouro Preto continuava lá embaixo, bem diferente do que estava acostumado. Sentou-se na beirada da cama e tentou se lembrar do que bebera no dia anterior. Não conseguia sequer lembrar dos lugares em que estivera. Com a cabeça pesando quase uma tonelada, saiu do quarto através de corredores pelos quais não se lembrava de ter passado. Apoiando-se nas paredes. chegou a uma copa onde alguns conhecidos tomavam café e davam risadas:
“- Bem vindo à Maracangalha, flamenguista!”

Só então percebeu que no dia anterior não conseguira chegar até o Pronto Socorro.

Caiafa

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